sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Professor explica por que ler Nietzsche

Em "Nietzsche", o professor Oswaldo Giacóia Júnior explica por que a obra de Friedrich Nietzsche (1844-1900) continua relevante. O livro faz parte da coleção "Folha Explica", série composta por mais de 80 volumes sobre diversas áreas do conhecimento. Leia um trecho.


POR QUE LER NIETZSCHE HOJE



Dentre os clássicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o pensador mais incômodo e provocativo. Sua vocação crítica cortante o levou ao submundo de nossa civilização, sua inflexível honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaça ocultas em nossos valores mais elevados, dissimuladas em nossas convicções mais firmes, renegadas em nossas mais sublimes esperanças. Essa atitude deriva do que Nietzsche entendia por filosofia.
Para ele, filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade. O compromisso com a autenticidade da reflexão exige vigilância crítica permanente, que denuncia como impostura qualquer forma de mistificação intelectual. Por isso, Nietzsche não poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de fé. O destino da cultura, o futuro do ser humano na história, sempre foi sua obsessiva preocupação. Por causa dela, submeteu à crítica todos os domínios vitais de nossa civilização ocidental: científicos, éticos, religiosos e políticos.
Nietzsche é um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e a política moderna como transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e religiosos, numa conjuração subterrânea que conduz ao amesquinhamento das condições nas quais se desenvolve a vida social. Nesse sentido, ele é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade. Para ele, isso era uma conseqüência funesta da extensão global da sociedade civil burguesa, tal como esta se configurou a partir da Revolução Industrial.
Nietzsche se opõe à supressão das diferenças, à padronização de valores que, sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposição totalitária de interesses particulares; por isso, ele é também um opositor da igualdade entendida como uniformidade. Assim, denunciou a transformação de pessoas em peças anônimas da engrenagem global de interesses e a manipulação de corações e mentes pelos grandes dispositivos formadores de opinião.
O esforço filosófico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes correntes históricas responsáveis pela formação do Ocidente: a tradição pagã greco-romana e a judaico-cristã; e o que resultou da fusão entre as duas.
Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herança cultural de nossa tradição, Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que até hoje impregnam nosso vocabulário e povoam nosso imaginário político e artístico. Tais são, por exemplo, as noções de Apolo e Dionísio, transformadas em categorias estéticas, os conceitos de vontade de poder, além-do-homem (Übermensch), eterno retorno e niilismo e a figura da morte de Deus.
É impossível se colocar à altura dos principais temas e questões de nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche. Ateísta radical, ele atribui ao homem a tarefa de se reapropriar de sua essência e definir as metas de seu destino. Dele afirma o filósofo Martin Heidegger: "Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica. Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da terra?"
Nesse sentido, Nietzsche é o pensador de nossas angústias, que não poupou nenhuma certeza estabelecida --sobretudo as suas próprias convicções-- e desvendou os mais sinistros labirintos da alma moderna. Com a paixão que liga a vida ao pensamento, Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna, sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens no fim do século 19. Dessa sua condição, postado entre o final e o início de duas eras, Nietzsche esboçou um quadro que, em todos os seus matizes, nos concerne ainda, na passagem a um novo milênio, em direção a um destino que ainda não se pode discernir.
A despeito de sua visão sombria, Nietzsche tentou ser, ao mesmo tempo, um arauto de novas esperanças. Sua mensagem definitiva --a criação de novos valores, a instituição de novas metas para a aventura humana na história-- é também um cântico de alegria. Essa é uma das razões pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da combinação paradoxal de elementos antagônicos: sombra e luz, agonia e êxtase, gravidade e leveza.
Isso explica por que, para ele, o riso e a paródia são operadores filosóficos inigualáveis: eles permitem reverter perspectivas fossilizadas. Nietzsche, o impiedoso crítico das crenças canônicas, é também um mestre da ironia. Sua ambição consiste em tornar superfície o que é profundidade, restituir a graça ao peso da seriedade filosófica.

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